O itinerário do défice <br>da nossa balança comercial de bens

Anselmo Dias

A crise, para uns, é fruto da (des)re­gu­la­ri­zação, dos ex­cessos do mer­cado e da falha por parte dos bancos cen­trais de con­trole do sis­tema fi­nan­ceiro. Para ou­tros, a crise emana da falta de ética de uns poucos, na con­vicção de que a ga­nância é um dos sete pe­cados mor­tais. Para ou­tros, ainda, o mal dos males advém da glo­ba­li­zação que, de tão per­ni­ciosa, só é com­pa­rável à Peste Negra que as­solou a Eu­ropa na Idade Média. Para todos estes não é o co­nhe­ci­mento real do efeito pre­dador do ca­pi­ta­lismo, a sua ir­ra­ci­o­na­li­dade e a sua es­sência anti-so­cial que estão em causa, mas, apenas, al­guns des­vios me­ra­mente com­por­ta­men­tais de uns tantos bons ra­pazes.

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Dos ar­gu­mentos atrás re­fe­ridos aten­temos na questão da glo­ba­li­zação na me­dida em que ela é re­fe­rida como uma das causas da pre­sente crise ins­ta­lada em Por­tugal.

Aqueles que in­vocam este ar­gu­mento sa­li­entam que o peso cres­cente das cha­madas eco­no­mias emer­gentes in­va­diram, com os seus pro­dutos ba­ratos, as eco­no­mias mais de­sen­vol­vidas pro­vo­cando uma ver­da­deira he­ca­tombe nos res­pec­tivos te­cidos pro­du­tivos.

O mal, para essa gente, está de­fi­nido: chama-se Brasil; chama-se Rússia; chama-se Índia; chama-se China... os cha­mados BRIC.

Para essa gente a cen­tra­li­dade eco­nó­mica de que, his­to­ri­ca­mente, a Eu­ropa dis­punha des­locou-se, so­bre­tudo para a Ásia cujo de­sígnio geo-es­tra­té­gico su­pera em muito o efeito de­vas­tador que Átila, o chefe dos hunos, causou no sé­culo V ao nosso con­ti­nente. Nem mais, nem menos: cui­dado com os hunos. Eles, uti­li­zando uma ex­pressão po­pular, «andem por aí».

A glo­ba­li­zação está, pois, por todas estas ra­zões, na ordem do dia na me­dida em que al­terou pro­fun­da­mente os fluxos co­mer­ciais em be­ne­fício de uns e em pre­juízo de ou­tros.

Por­tugal foi, ao que dizem, uma das ví­timas.

Tal afir­mação é ver­da­deira?

Ha­verá, cer­ta­mente, mercê de al­gumas des­lo­ca­li­za­ções e da li­be­ra­li­zação das trocas co­mer­ciais efeitos gra­vosos na nossa eco­nomia mas, em termos glo­bais, em nossa opi­nião, re­la­ci­onar a di­mensão da nossa crise à glo­ba­li­zação é uma pro­funda men­tira. É um logro.

Qual é o cri­tério, no caso em apreço, para dis­tin­guir a men­tira da ver­dade?

O cri­tério re­side na lei­tura atenta do do­cu­mento de­sig­nado «Es­ta­tís­ticas do Co­mércio In­ter­na­ci­onal, 2010» da res­pon­sa­bi­li­dade do Ins­ti­tuto Na­ci­onal de Es­ta­tís­tica, cujos dados sa­li­entam o se­guinte: nos úl­timos quatro anos, de 2007 a 2010, a partir da mais re­cente crise cí­clica do ca­pi­ta­lismo, Por­tugal im­portou bens no valor de 232,6 mil mi­lhões de euros e ex­portou bens no valor de 145,6 mi­lhões de euros.

Con­fron­tando tais dados con­clui-se o se­guinte: ti­vemos na­quele pe­ríodo um saldo ne­ga­tivo na ba­lança co­mer­cial de bens num valor equi­va­lente, pasme-se!, a 87 mil mi­lhões de euros.

Como se ex­plica tão vul­tuoso dé­fice?

A ex­pli­cação não re­side numa pro­funda re­lação as­si­mé­trica com os cha­mados BRIC.

A ex­pli­cação é mais pró­xima.

Ela re­side na re­lação de trocas num es­paço ter­ri­to­rial que se per­corre fa­cil­mente. Fa­lamos de um iti­ne­rário que co­meça em São Bento, em Lisboa, atra­vessa a Es­panha, a França e a Itália, in­flecte para Norte, rumo à Ale­manha, atra­ves­sando a Suíça. Che­gados a Berlim o iti­ne­rário pros­segue pela Ho­landa, per­corre a Bél­gica e ter­mina em Bru­xelas.

Este per­curso sim, é o per­curso do dé­fice da nossa ba­lança co­mer­cial.

O nosso dé­fice co­mer­cial é um dé­fice de vi­zi­nhança.

De vi­zi­nhança ge­o­grá­fica.

De vi­zi­nhança de ina­de­quadas po­lí­ticas aos in­te­resses do nosso País.

De vi­zi­nhança de um logro, de uma men­tira, da pro­messa de que a Eu­ropa, onde o bloco cen­tral nos in­te­grou, seria um es­paço de co­esão eco­nó­mica e so­cial. Tretas.

Ve­jamos, então.

 1. Dé­fice na ba­lança co­mer­cial, por grupos de pro­dutos (di­fe­rença entre im­por­ta­ções e ex­por­ta­ções)

Os pro­dutos que mais con­tri­buíram, entre 2007 a 2010, para o nosso dé­fice co­mer­cial foram os se­guintes:

- com­bus­tí­veis mi­ne­rais: 25,3 mil mi­lhões de euros;  

- má­quinas e apa­re­lhos: 18,3 mil mi­lhões de euros;

- pro­dutos agrí­colas e agro-ali­men­tares: 16,4 mil mi­lhões de euros;

- pro­dutos quí­micos: 14,4 mil mi­lhões de euros;

- veí­culos e outro ma­te­rial de trans­porte: 12,1 mil mi­lhões de euros.

Estes cinco grupos de pro­dutos ex­plicam, na ordem dos 99%, o valor do dé­fice da nossa ba­lança co­mer­cial.

É aqui, de­veria ser aqui, e será aqui, quando a cor­re­lação de forças for fa­vo­rável a uma rup­tura com a prá­tica go­ver­na­tiva do bloco cen­tral, que a acção po­lí­tica deve, pri­o­ri­tária e pla­ni­fi­ca­da­mente, ac­tuar por forma a re­duzir o dé­fice ex­terno por via do de­sen­vol­vi­mento das nossas forças pro­du­tivas e da subs­ti­tuição das im­por­ta­ções por pro­dução na­ci­onal.

No âm­bito do co­mércio in­ter­na­ci­onal im­porta, também, em nome da ver­dade, sa­li­entar a parte que diz res­peito às áreas que, po­si­ti­va­mente, con­tri­buíram para ame­nizar o efeito de­vas­tador das im­por­ta­ções atrás re­fe­ridas.

As prin­ci­pais áreas onde, de 2007 a 2010, fomos ex­ce­den­tá­rios no co­mércio in­ter­na­ci­onal são as se­guintes:

- pro­dutos mi­ne­rais e mi­né­rios: 4,6 mil mi­lhões de euros;

- cal­çado: 3,3 mil mi­lhões de euros;

- ves­tuário: 2,8 mil mi­lhões de euros;

- ma­deira e cor­tiça: 2,8 mil mi­lhões de euros;

- pastas ce­lu­ló­sicas e papel: 1,1 mil mi­lhões de euros.

No con­fronto destas duas lis­ta­gens é vi­sível que na pri­meira há pro­dutos com médio e alto valor acres­cen­tado, en­quanto na se­gunda há um peso im­por­tante na ex­por­tação de ma­té­rias primas em bruto e in­dús­trias com mão-de-obra in­tensa mal paga, como são os casos do cal­çado, do ves­tuário e da ma­deira e cor­tiça.

Acres­cente-se que o su­pe­ravit dos cinco pro­dutos mais im­por­tantes do nosso co­mércio in­ter­na­ci­onal não chega, em con­junto, para su­prir o dé­fice ali­mentar, ou seja, o re­sul­tado po­si­tivo no co­mércio in­ter­na­ci­onal na área da in­dús­tria ex­trac­tiva, do cal­çado, do ves­tuário da ma­deira e cor­tiça, da pasta e do papel não chega para su­prir o dé­fice na área da nossa ali­men­tação!

Este ab­surdo vai ao ponto de o dé­fice dos pro­dutos ali­men­tares trans­for­mados pela in­dús­tria su­perar, sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, o dé­fice co­mer­cial no âm­bito dos veí­culos au­to­mó­veis, re­bo­ques e semi-re­bo­ques.

De todos os crimes pra­ti­cados pelas po­lí­ticas de di­reita na área da eco­nomia este será, se­gu­ra­mente, um dos mais ex­pres­sivos.

 2. Dé­fice na ba­lança co­mer­cial, por países (di­fe­rença entre im­por­ta­ções e ex­por­ta­ções)

Em­bora o nosso País tenha re­la­ções co­mer­ciais com muitos países a ver­dade é que essa re­lação está muito con­cen­trada.

Com efeito, entre 2007 e 2010:

- cerca de 75,5% das nossas ex­por­ta­ções foram di­ri­gidas para os países da União Eu­ro­peia;

- cerca de 76,3% das nossas im­por­ta­ções ti­veram origem nos países da União Eu­ro­peia;

- cerca de 77,7% do dé­fice da nossa ba­lança co­mer­cial de bens re­sultam das trocas ha­vidas com os países da União Eu­ro­peia.

Estes dados glo­bais, em­bora pre­o­cu­pantes, es­condem uma si­tu­ação ainda mais pre­o­cu­pante e que é esta: a con­cen­tração do nosso co­mércio ex­terno e a di­mensão do saldo ne­ga­tivo do mesmo está, so­bre­tudo, con­cen­trado em quatro países, a saber: Es­panha, Ale­manha, Itália e Ho­landa.

No es­paço tem­poral atrás re­fe­rido as trocas co­mer­ciais com aqueles países foram as se­guintes:

- ex­por­támos bens no valor de 69,7 mil mi­lhões de euros;

- im­por­támos bens no valor de 129, 2 mil mi­lhões de euros.

Entre um e outro valor re­sultou um dé­fice de 59, 5 mil mi­lhões de euros, dado que re­pre­senta mais de 2/​3 do saldo ne­ga­tivo da nossa ba­lança co­mer­cial de bens, verba que le­vanta a se­guinte questão:

quantos tra­ba­lha­dores es­pa­nhóis, ale­mães, ita­li­anos e ho­lan­deses ti­veram acesso a uma ac­ti­vi­dade la­boral criada pela de­sin­dus­tri­a­li­zação em Por­tugal le­vada a cabo pelos go­vernos do PS, PSD e CDS?

Tal per­gunta re­mete para outra: e quantos em­pregos se­riam cri­ados em Por­tugal se uma parte sig­ni­fi­ca­tiva da­quele dé­fice fosse su­pe­rado pelo de­sen­vol­vi­mento das nossas forças pro­du­tivas na agri­cul­tura, nas pescas, nas in­dús­trias ex­trac­tivas e nas in­dús­trias trans­for­ma­doras?

Acres­cen­temos a esta se­gunda per­gunta uma outra: e quantos im­postos não en­tra­riam nos co­fres do Es­tado em função de uma po­lí­tica pa­trió­tica ten­dente a subs­ti­tuir o má­ximo de im­por­ta­ções por pro­dução na­ci­onal e, por essa via, dis­po­ni­bi­lizar meios e re­cursos para a sus­ten­ta­bi­li­dade do nosso Es­tado so­cial?

Tais ques­tões são si­len­ci­adas pelas vozes do dono cujo mu­tismo, nesta área, é su­bli­mado pela te­oria de que a crise em Por­tugal tem a sua ex­pli­cação na glo­ba­li­zação, omi­tindo que, salvo os casos dos pe­quenos países como o Lu­xem­burgo, Chipre e Malta, o nosso País é, no con­junto do grupo do euro, aquele que, a se­guir à Grécia, mais im­porta tendo como re­fe­rência o valor per ca­pita.

Fa­lemos, então, da glo­ba­li­zação e da sua com­po­nente mais me­diá­tica em torno dos BRIC, ou seja, do Brasil, Rússia, Índia e China.

Pois bem, no de­curso do pe­ríodo atrás re­fe­rido, o nosso co­mércio com tais países foi o se­guinte:

- ex­por­támos bens no valor de 2,9 mil mi­lhões de euros;

- im­por­támos bens no valor de 13,2 mil mi­lhões de euros;

- o saldo, entre um e outro valor, foi ne­ga­tivo na ordem dos 10,3 mil mi­lhões de euros.

Con­fron­temos esse dé­fice com o dé­fice de 32,9 mil mi­lhões com a Es­panha, com os 12,9 mil mi­lhões com a Ale­manha, com os 7,4 mil mi­lhões com a Itália e com os 6,4 mil mi­lhões com a Ho­landa.

Equi­parar tais si­tu­a­ções é o mesmo que com­parar a es­ta­tura de um anão com a de um gi­gante.

Para se per­ceber me­lhor esta ana­logia fa­çamos as se­guintes contas: or­de­nemos se­quen­ci­al­mente os quatro países eu­ro­peus com os quais temos os mai­ores dé­fices na ba­lança co­mer­cial de bens, or­de­nemos, de igual forma, os cha­mados BRIC e re­la­ci­o­nemos uns e ou­tros.

O re­sul­tado desse exer­cício é o se­guinte:

- o dé­fice com a China re­pre­senta 13% do dé­fice com a Es­panha;

- o dé­fice com o Brasil re­pre­senta 26% do dé­fice com a Ale­manha;

- o dé­fice com a Rússia re­pre­senta 18% do dé­fice com a Itália;

- o dé­fice com a Índia re­pre­senta 21% do dé­fice com a Ho­landa.

Omitir esta pro­funda as­si­me­tria, como as vozes dono o fazem, não passa de um des­pu­do­rada omissão da ver­dade.

Fonte: Es­ta­tís­ticas do Co­mércio In­ter­na­ci­onal, 2010, INE, Edição 2011



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